domingo, 26 de fevereiro de 2012

Nada a mais

"Doces eram raros lá em casa. Por isso, ganhar bolachas recheadas era uma emoção. A título de justiça, eu e meus irmãos abríamos o pacote, espalhávamos os biscoitos na mesa e fazíamos a conta: um pra você, um pra mim, um pra você. O problema é que as bolachas nunca vinham em um número que desse para dividir igualmente por três - e alguém sempre ficava com uma a menos.

Por essa diferença, os lanches terminavam em discussão, berreiros de "manhê, ele comeu mais!", tapas e pontapés. Minha mãe ficava fula por a gente brigar por tão pouco - e jurava nunca mais comprar biscoito nenhum.

Eventualmente, a promessa era esquecida. E num dia desses, em que mais uma vez a gente começava a discutir por causa dos tais biscoitos, minha avó, que observava a gente, perguntou: "Por que vocês não comem as bolachas que têm, em vez de contar as que não têm?".

É uma história boba (e vergonhosa), mas nunca me esqueci dessa frase. Especialmente porque, mais de 20 anos depois, ainda me pego contando as bolachas que faltam, em lugar de me contentar com as que estão na minha mão.

Reclamar é tão fácil. Mais do que isso, é o que nos assunto. Pode reparar: nas suas rodas de conversa, quanto tempo as pessoas passam lamentando alguma coisa, e quanto passam celebrando suas graças? Aposto que, assim como no meu mundo, se fala mais mal do que bem, seja qual for o assunto. Lamentamos o que não temos. O que queríamos e não podemos. O que não é do nosso jeito. O que outros têm, mas nós é que merecíamos.

E vamos ficando cegos, a ponto de que, diante de tanta reclamação, mostrar-se satisfeito é quase provocação. Como se, ao dizer que estamos felizes com nós mesmos, com a vida, com nossas conquistas ou com a nossa sorte, a gente estivesse sendo arrogante, metido, bobo.

Então, nessa cultura do nada-nunca-é-bom-o-bastante, esquecemos de agradecer. Não os "obrigadas" das coisas pequenas, como quando alguém nos deseja bom dia. Esses são fáceis, uma palavrinha. Mas a gratidão pelas coisas mais importantes... Ah, isso é bem mais difícil. A começar porque não percebemos, simplesmente, quantas dádivas para agradecer. Com o olhar calibrado para notar as bolachas que faltam, não conseguimos reconhecer as que temos. Encaramos as graças da vida quase como direitos garantidos: o teto, a comida, o amor, o conhecimento, a saúde, o trabalho - por que agradecer por isso, se é meu, eu fiz, eu paguei, eu mereço?

Esquecemos que nada disso é certo - e pode mudar quando virarmos a esquina, o que é mais do que razão para pararmos de olhar as faltas e celebrar os feitos. E ignoramos que nada disso é gratuito - mesmo que a gente tenha recebido de graça. Se temos o que temos, se somos quem somos, devemos tudo às pessoas que nos ensinaram e acompanharam, que nos aceitaram e ajudaram, que se esforçaram para nos ver felizes e providenciaram que nossas necessidades fossem satisfeitas.

Hoje, quando me pego reclamando, tento parar e contar as bolachas que tenho. Invariavelmente, assim como quando era criança, termino envergonhada. Assim como naquela época, a verdade é que um biscoito (ou qualquer vontade) a mais não vai fazer nenhuma diferença - não me dar por satisfeita é mais um mau hábito do que uma necessidade. A vida que tenho e maravilhosa, e não valorizá-la é como deixar de merecê-la.

Por fim, além de reconhecer o que de bom, acho que precisamos aprender a agradecer. Muitas vezes, obrigada parece muito pouco - e, na falta de palavras melhores, não dizemos nada. Talvez fazer um elogio para cada reclamação seja um bom começo. Talvez trocar o tempo gasto com lamentos por tempo nos esforçando para demonstrar a gratidão seja um bom caminho".


Fonte:

Revista SORRIA para ser feliz agora – 23ª edição – Ano 4

Roberta Faria/Editora-chefe

(Texto compartilhado pela Georgya)


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